Um acampamento, naturalmente.

- Mas que belo dia chuvoso para um acampamento! - falou Beth, enquanto comprimentava os amigos que reuniam suas coisas em frente à casa de Ficzko.

De fato, a chuva ainda não começara, mas estava preparando-se. Era manhã do dia 12 de julho de 1984, e os preparativos para o tão aguardado acampamento estavam a todo o vapor. Passariam o final de semana à beira do lago Kansas, na região de Westville, porém, caso a previsão do tempo não lhes fosse agradável, ficariam em uma pousada há dois quilômetros do lago.

- Oh sim, claro. Nossos planos foram por água abaixo, gente. Já não tenho mais a mínima vontade de seguir viagem.

- Deixe de frescura, Katarina. Vai ser legal, a pousada é bem aconchegante. Tem uma família que cuida de tudo por lá, eles são meio esquisitos, mas bastante simpáticos.

- Thom tem razão, Kat. - foi a vez de Ficzko argumentar - E além do mais, estamos nos preparando há meses para essa viagem, não iremos desistir somente por uma ameaça de chuva. Ninguém aqui é de açúcar, certo?

- Certíssimo. Vamos logo, já estou ficando entediada. - disse Helena, que já estava impaciente.

Elizabeth acomodou sua mala junto com as demais. Feito isso, estava tudo pronto para a viagem. Thomas dirigia com calma a velha caminhonete de seu padrasto: um modelo bem antigo, e grande o suficiente para acolher 5 passageiros e suas respectivas bagagens. Fumando seu cigarro e com o vento batendo em seu rosto, ele sentia uma incrível sensação de liberdade e poder. A brisa agitava seus cabelos louros, na altura dos ombros, o que o deixava incrivelmente bonito. Em alguma rádio, cujo nome não importa, tocava uma canção dos Beatles, da qual ele decorara a letra, e cantava junto:

- Celophane flowers of yellow and green, towering over your head. Look for the girl with the sun in her eyes and she's gone: Lucy in the sky with diamonds, Lucy in the sky with diamonds...

Beth olhava para ele com ternura. Jamais imaginou que amaria alguém da forma que o amava, e naquele final de semana completariam um ano de namoro. Gostava de tudo que ele fazia: das suas caras, dos seus gestos, da sua voz, do seu rosto, do seu corpo, do seu beijo... Para ela, Thomas era composto de uma perfeita sintonia de detalhes. Não conteve-se, e acabou comentando:

- Quando canta, você fica mais lindo ainda, amor.

- Às vezes você fala cada coisa estúpida, Elizabeth!

A frieza da resposta não deveria espantar, pois já sabia-se que ele não era uma pessoa romântica, e menos ainda alguém compreensivo, mas, mesmo assim, isso a feria de forma irremediável. A situação tornara-se embaraçosa, e ao perceber isto, John propôs que cantassem alguma música. Todos concordaram, começaram então a entoar diversas canções típicas de viagem.

Ainda faltavam alguns quilômetros do destino final quando começou a chover. No começo, era uma chuva fina e rala, mas que foi aumentando até tornar-se quase uma tempestade. Mal podiam enxergar a estrada, que, por sorte, não era muito transitada. Estavam todos frustrados: passaram meses planejando tudo, e agora, justo agora, aquela chuva toda. Como já fora dito previamente, dobraram à esquerda da estrada que levava ao lago, e em poucos minutos chegaram na pousada. Tiveram que descarregar rapidamente suas malas, para escapar da chuva. Levaram para dentro apenas o necessário (tal como roupas, toalhas e produtos de higiene pessoal), já as barracas, sacos de dormir e demais coisas do acampamento ficariam dentro do carro. Após deixarem tudo na entrada, foram recebidos pelos donos do estabelecimento. Sahyd era quem comandava tudo por ali. Ele aparentava ter uns 50 (ou talvez 55) anos de idade, tinha cabelos grisalhos e um cavanhaque que lhe dava uma aparência extremamente ridícula. Trajava vestes sociais, impecavelmente limpas, e mascava um galho de ervas o tempo todo. Sua mulher, Hannah, deveria ter uns 40 anos de idade. Possuía cabelos muito compridos, presos por um desajeitado coque, e segurava no colo uma garotinha de 6 anos de idade, chamada Sarah, que era sua única filha. O casal mostrou-lhes os quartos e o resto da casa, em seguida levou-os à sala central, bastante aquecida por uma grande lareira.


- É uma casa bastante bonita, senhor Sahyd. - comentou Elizabeth, enquanto aceitava uma xícara de chocolate quente, oferecida por Hannah.

- Obrigado, moça. Bem, de fato essa casa é nosso orgulho. Seis gerações da minha família moraram nela, e outras gerações moraram aqui antes de ser construída.

Hannah fitou o marido severamente, o que fez Katarina pensar que ela havia desaprovado, por algum motivo, o comentário dele.

- Ah, então tratasse de uma espécie de relíquia post mortem!

Com o comentário de Thomas, todos riram, exceto os donos do local. Hannah levantou-se do sofá e comentou, quase gritando:

- Você não deveria brincar com essas coisas, meu rapaz. Não se brinca com a morte quando sua alma já queima nas trevas.

O grupo de amigos olhou para ela com uma dose de espantamento evidente, e Sahyd tentou remediar a situação: - Perdoem as palavras de minha mulher. Hannah não sabe o que fala. - virou-se para o grupo, e, diminuindo o tom de voz ,completou - Ela toma remédios controlados há anos, sofro muito com sua doença. Peço que ignorem qualquer coisa que Hannah venha a dizer.

- Tudo bem, eu que peço perdão, não deveria ter feito piadinhas com tal assunto.

- Realmente não deveria mesmo, Thomas. Você não cresce nunca hein? - Helen estava bastante estressada.

- Ora, ora, parem com isso. Não vão brigar crianças. Sahyd e eu vamos preparar o jantar. Sarah ficará convosco, espero que ela não vá lhes incomodar. - dito isso, Hannah levantou-se, e o marido segui-a.

- Crianças? Pelo amor de deus, que mulher mais louca. - Ficzko não havia gostado nada da forma como fora tratado. - Não devíamos ter vindo para cá. Elizabeth tentou melhorar os ânimos, dizendo:

- Ah gente, não é tão ruim assim. Amanhã aposto que não haverá chuva, e iremos cedo para o lago. Além do mais, aqui é extremamente aconchegante.

- Beth tem toda a razão, - disse Katarina. - é um bom lugar para se ficar. Sarah, você gosta de morar aqui?

A menininha, antes calma, alterou sua expressão após essa pergunta. Fitou a todos com seus olhos azuis arregalados, e passados alguns segundos respondeu, amedrontadamente:

- Tenho medo, eles falam à noite toda, e não me deixam dormir. Mamãe disse que vão embora, mas nunca vão. Eles são muito maus. Vão pegar vocês, papai disse. Mas é segredo!

- É, pelo visto a mãe não é a única doida da família...

- Cale a boca, Jhonny. Quem vai nos pegar, Sarah? E porque vão nos pegar?

- Vocês não tem culpa, mas antes tinham. Mamãe disse que eles vão fazer justiça, mas eu não queria isso. Você é bonita, Elizabeth, sempre foi bonita. Mas muito má, e papai me falou que todos vocês foram muito maus, eu disse que agora vocês são bonzinhos, mas ele disse que maldições não podem ser quebradas. Olha, vou mostrar uma coisa, mas é segredo, tá?

Katarina concordou com a cabeça, e a garotinha foi rapidamente até uma escrivaninha do outro lado da sala. Voltou com alguns recortes de jornais, que aparentavam ser muito antigos. Entregou-os na mão de Helena. Ficzko estava curioso, logo indagou:

- Diga-nos, o que está escrito aí? Rápido Helena.

- É uma manchete de jornal, vou ler.

No recorte, havia uma foto de 5 jovens e um trecho, que dizia assim:



21 de abril de 1970


POLICIAIS ENCONTRAM CORPOS
Na manhã do dia 20, foram encontrados os corpos de 4 jovens, que haviam desaparecido misteriosamente. A polícia ainda investiga o crime, e o responsável pelas investigações não pretende anunciar nada antes de conseguir provas. Elizabeth, Pierre (conhecido na cidade como Ficzko), Helena e Dorothea foram encontrados mortos em uma cabana abandonada ao oeste da Rota 81. A jovem Elizabeth, que provavelmente estava com os amigos na hora em que foram mortos, suicidou-se após a chegada do resgate. Junto à ela, no chão, uma espécie de "aviso", riscado na terra com gravetos, que dizia assim: "Maldições não podem ser quebradas". Os policias acreditam que eles foram vítimas de algum serial killer, que aterrorizava-os há algum tempo. Os corpos serão velados na Capela Saint Louis.


Logo ela pegou os demais recortes, neles constavam outras manchetes.

29 de abril de 1970

POLÍCIA ENCONTRA SERIAL KILLER ACUSADO DE ASSASSINAR 5 JOVENS.

Michael Mozër é considerado culpado pela morte do grupo de jovens desaparecidos desde 15 de maio deste ano. A polícia acusou-o como sendo o responsável pelo crime que chocou toda a população do pequeno vilarejo de Smallplace. Os jovens apresentavam um comportamento estranho há bastante tempo,o que levou os policiais à conclusão de que eles haviam drogado-se antes de morrer.

- É só isso Helena?

- Tem uma nota do obituário aqui, há nomes, mas.. os sobrenomes estão riscados.


- Então leia.

É COM MUITO PESAR QUE OS AMIGOS E FAMILIARES DE ELIZABETH, PIERRE (FICZKO), KATARINA, HELENA E DOROTHEA COMUNICAM-LHES QUE AS ÚLTIMAS PRECES SERÃO REALIZADAS HOJE, AS 19 HORAS, NA CAPELA DE SAINT LOUIS .

Foi um choque imenso para todos, era como se o mundo desabasse na cabeça deles. Alguns passos apressados cruzaram o corredor, e, rapidamente, Sahyd e Hannah chegaram até a sala, retirando os jornais das mãos de Helena.


- Não mexam no que não é de vocês. Aqui nesta casa nós prezamos muito os bons modos. Espero que isso não se repita mais. Quanto a você, Sarah, vá já para o seu quarto, conversaremos depois.

- Mas papai, eles são bonzinhos!


- Cale-se e obedeça seu pai Sarah, esta noite você foi uma menina muito má, e deverá ser castigada.

A menina subiu as escadas correndo e Hannah seguiu-a. Sahyd olhava para todos com reprovação, e energicamente bradou:


- Se em casa não aprenderam bons modos, irei ensinar-vos. Não permito que mexam em minhas coisas. Eu, por acaso, mexi em vossos pertences? Deveriam envergonhar-se.


- E quanto à tudo que Sarah disse? E esses recortes? Queremos respostas!


- Elizabeth, contenha-se. - pediu Kat.


- Não creio que sejam tolos a ponto de acreditar no que uma garotinha de 6 anos de idade diz! O jantar está servido. Podem comer a vontade e depois subir para seus aposentos. Irei levar essa velha caixa de recortes comigo, para evitar que nos desentendamos novamente.

Um silêncio pairou pela sala enquanto Sahyd subia as escadas, bastante zangado. Não só a sala, como também o resto da casa estavam silenciosos. Thomas levantou-se e seguiu pelo corredor em direção à cozinha, um a um os demais foram tomando a mesma direção. Não trocaram sequer uma palavra durante o jantar inteiro, porém Helena não conseguiu conter-se:

- Talvez isso tudo seja apenas uma grande coincidência, mas, e se não for?

- Cale a boca Helena. Aquele velho sarcástico e sua mulherzinha querem apenas divertir-se à nossas custas, será que não percebem? Ignorem-no e ele vos deixará em paz. - Thomas parecia, de fato, não importar-se com aquilo.

- Ignorar, Thom? Você fala isso porquê não era o seu nome que estava escrito lá!

- Faça-me o favor, Elizabeth. Desta vez você está passando dos limites com suas asneiras. Existem milhares de nomes iguais no mundo!

- Pode sim existir milhares de nomes iguais, Thomas. Porém, duvido que haja no mundo pessoas com nomes iguais, e que também sejam amigos. E o que a menina falou? E o que a mãe dela disse mais cedo, alguém ainda lembra? - Ficzko também estava alterado.

- Até você, Johnny Stockler? A menina diz apenas o que ouve dos pais. E a mãe dela é uma conturbada, Sahyd mesmo disse-nos mais cedo que ela é doente. Parem com essas bobagens.

- Não são bobagens Thomas. Todos nós estamos assustados! Eu quero ir embora daqui, e acredito que não sou a única.

Nesse instante, quase sorrateiramente, Hannah parou diante à porta que levava ao corredor. Todos olharam-se assustados, enquanto ela ria secamente.

- Queres ir embora Katarina? E você acha mesmo que isso resolveria? Ninguém pode escapar do destino, e o de vocês está traçado.

- Ora sua demente de uma figa, cale essa boca! - Thomas, descontrolado, ia partir para cima dela quando Johnny segurou-o.

- Sabe Thomas, - disse Hannah, enauqnto debruçava-se na janela - algumas coisas acontecem sem que possam ter explicações científicas. Mas você não acredita, não é? Afinal, De nihilo nihil¹. É o que você sempre diz.

Nesse momento, uma travessa de vidro, que estava no centro da mesa espatifou-se. As garotas recuaram rapidamente, e encolheram-se no canto da sala de jantar. Thom estava assustado, chegou a desequilibrar-se, só não caiu porquê Ficzko segurou-o.

- Como você sabe isso?

- Thomas, meu querido, há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia.

Sahyd logo chegou à sala de jantar. Estava enfurecido coma esposa, e mandou-a deitar. Pediu desculpas à todos pelas loucuras da mulher,e contou-lhes que há muito tempo ela não estava bem. Tinha constantes alucinações e falava sobre uma maldição, que pairava sobre todos. No fim, ele riu, e acrescentou:

- Vejam, amanhã será um belo dia ensolarado. Assim poderão ir para o lago e aproveitar seu acampamento. Agora está ficando tarde, irei retirar-me. Caso queiram dormir, seus quartos estão arrumados. Peço-lhes para que não façam muito barulho, pois irei sedar Hannah para que ela durma.

- Está certo, nós também vamos subir. Temos que acordar cedo se quisermos ir para o lago, não é mesmo pessoal?

- Sim Thomas, subiremos todos.

E assim puseram-se a subir as escadas, seguindo diretamente para seus quartos, que ficavam ao final do corredor. Helena dormiria sozinha, no quarto ao lado dormiriam Fikczo e Katarina, e no último dormiriam Elizabeth e Thomas. Já passavam das duas horas da manhã, e o último casal ainda estava acordado, quando ouviram algumas vozes no corredor, eram Sahyd e Hannah.

- Thom, o que será que eles estão conversando?

- Não sei, levanta. Vamos até a porta para ouví-los, pois estou começando a achar que há coisas erradas por aqui.

Caminharam lentamente até a porta, e puseram-se a ouvir o que os dois velhos conversavam.

- Não gostei nada do seu comportamento hoje, Hannah. Eles desconfiaram, tive que mentir que você era doente. Pare com essas exibições fajutas de poder!

- Ora Sahyd, faça-me o favor. Umas crianças irresponsáveis que mal sabem o que dizem! Estão amaldiçoados, não durarão por muito tempo mesmo. Que tal se pegarmos eles amanhã, no lago? Ninguém desconfiará de nós, sairá tudo perfeito, como da última vez.

- Não, deixe que os espíritos trabalhem por sí só. E da última vez foi em 1970 Hannah, por pouco nao desconfiaram de nós. Eu estou lhe pedindo, não interfira na vingança deles.


- Tudo bem Sahyd, deixarei eles cuidarem disto, eu prometo. Você fechou a porta que leva para o porão?

- Não, e nem precisaria. Estão todos dormindo, não desconfiaram de nada. Vamos dormir também, pois está muito tarde, e cuide para que Sarah não abra a boca novamente.

- Eu cuidarei...


(menos de meia hora mais tarde)

Elizabeth, Thomas, Johnny e Katarina reuniram-se silenciosamente no quarto de Helena. Thom e Beth não tinham sido os únicos a ouvir a conversa entre os donos da pousada, e após uma breve conversa arrumaram suas malas: seria impossível permanecer ali. Ficzko tinha um plano em mente:

- Não será muito difícil, gente. Pude ver que a chave permanece na porta durante a noite, então nós descemos em silêncio, o Thomas vai na frente pra pegar o carro. Aí nós ligamos o motor e sumimos daqui.

Obviamente, a idéia foi aceita sem contestações. Ninguém gostaria de permanecer ali aquela noite. Haviam descido as escadas e ido para a parte exterior da casa sem mais problemas, quando Katarina decidiu voltar e visitar o tal porão misterioso. Beth, Ficzko e Helen tentaram impedí-la, mas quando puderam perceber, ela já estava longe. Não lhes restou outra alternativa a não ser seguí-la.

A porta de acesso para o porão ficava na parte traseira da casa: uma espécie de alçapão, sem nenhum cadeado ou fechadura. Uma escada estreita levava até a parte interior daquele cubículo. Quando estavam lá dentro, Ficzko acendeu a lanterna que levara em seu bolso por precaução. Iluminando as paredes puderam encontrar um interruptor, que iluminou o ambiente, deixando-os boquiabertos: em uma parede haviam diversas fotos deles, fotos de sua infância e também fotos recentes que haviam desaparecido de suas casas misteriosamente. Também estavam pendurados alguns recortes de jornais nos quais eles eram citados. Elizabeth quase desmaiou ao ver um pequeno boneco de pano com seu nome escrito, mergulhado em um recipiente cheio de sangue pútrido. No centro da sala estava uma mesa, com diversos livros (provavelmente da Idade Média), e também 5 caixinhas pretas fechadas com um laço de fita vermelha. Helena pode ver que cada uma trazia um nome e uma inscrição, provavelmente em latim. Decidiu abrí-las na ordem em que estavam dispostas. Em cada caixa, uma foto perfurada com alfinetes e um boneco, que parecia ser aqueles de vodoo. Johnny estava em estado de pânico, e tentava arrastar as garotas para fora quando viram que, na parede à sua frente escorriam gotas de sangue, formando a seguinte frase: Mors omni aetate communis est².

Um arrepio percorreu suas espinhas, então ouviram Thomas chamando-os, desesperado. Saíram correndo o mais rápido possível, e só conseguiram parar quando estavam dentro do carro. Ninguém falou nada durante o caminho inteiro.





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[1] De nihilo nihil: "Nada vem do nada" (Lucrécio)

[2] Mors omni aetate communis est: "A morte não poupa ninguém"