Ressaca moral

Elizabeth secou-se e parou diante do espelho. Observava-se com o rosto pálido, sozinha e transtornada. Sabia que se morresse agora, Thomas não se importaria. Enchugou as lágrimas, e sentou no chão, recostando-se na parede. Seu pulso parecia inchado. Embora o corte não tenha sido profundo, ardia um bocado. Sentia-se traída, apunhalada pelas costas. Por que isso? Logo Dorothea, por quem sempre tivera tanto carinho... Provavelmente se fosse alguma fanática religiosa, como era sua tia Norma, diria agora que Dorothy estava "possuída pelos poderes do maligno". Tal pensamento a fez rir, um riso triste e amargurado, mas um riso. Pensando bem, seria até melhor acreditar nisso do que aceitar a verdade. Nesse momento, seus familiares faziam falta. Que saudade dos almoços em família aos domingos! Quem sabe, se ela tivesse ficado com eles, nada disso teria acontecido. Se não tivesse sido tão teimosa e seguido os conselhos de sua mãe sobre voltar para casa após concluir o colegial, é bem provável que agora não estaria ali, chorando sozinha em um banheiro, com o pulso direito cortado. Droga! Tudo aquilo era uma simples suposição idiota, estava na hora de sair dali e encarar a realidade, por mais cruel que fosse.


Helena estava deitada em um sofá da sala-de-estar, quando Johnny chegou, abraçando-a.


- John? O que houve? - perguntou, assustada.


- Precisamos conversar. - começou ele, sentando no chão e olhando-a nos olhos. - Sabe, cheguei a conclusão de que nos últimos anos, me tornei tudo aquilo que tanto desprezo. Escondi dos meus amigos quando eu e você estávamos juntos, te troquei pela a Katarina por pressão do Thomas, despois a traí contigo. E quando descobri que você estava grávida, entenda, não sabia o que fazer, o aborto pareceu-me a solução mais viável parta nós dois, só que me arrependo tanto! Talvez não haja mais tempo, mas gostaria que você me perdoasse, pois quando esse inferno acabar, prometo lhe fazer a mulher mais feliz do mundo, porque eu te...


- Helena, vamos, acorde! - era Johnny. Tudo não passara de um sonho, isso feriu-a.- Eu só vim avisar que a cama do quarto de hóspedes está arrumada, e trouxe esse edredon, para caso você queira esperar pela Beth aqui.


- Obrigado, acho que vou esperar um pouco.


- Você parece desapontada, aconteceu algo? - indagou Ficzko, com curiosidade.



- Não, nada de importante, só um sonho que tive, e você o interrompeu.



- Poxa, desculpa. Espero que não tenha sido um sonho ruim! Uma vez me disseram que os sonhos são a reprodução que nosso inconsciente dá aos nossos desejos. Talvez seria bom se pudéssemos torná-los reais- respondeu ele, enquanto ia saindo da sala.



- Se você soubesse o quanto... - emendou Helen, suspirando.



- Oi? Disse alguma coisa? - Ficzko virou-se para ela.



- Nada não, estava pensando alto. Boa noite.




Enquando ouvia os passos dele subindo a escada, Helena chorava. Ventava forte lá fora, parecia que o vento compadecia-se com a sua situação. Ela não entendia como as coisas podiam estar sempre tão erradas! Amava-o há anos, e sempre soube que não era correspondida. O choro era invevitável, mas também inútil, então adormeceu.




No andar de cima, Johny Stockler debatia-se na cama. Não conseguia pegar no sono, relembrando o passado. As vezes sentia pena de Helen. Percebia a forma como ela o olhava, e, de alguma forma, sabia que o amor platônico que ela nutria não havia acabado. Por vezes sentira ódio de si mesmo, não era justo tê-la enganado daquela forma, aproximando-se dela por uma aposta infantil, proposta por Thom. Continuaram juntos por um mês, pois a sintonia que tinham era tão perfeita, impossível de ser explicada. Mas não contara a ninguém, não poderia, afinal, tinha uma aparência a zelar, e ela estava longe de ser digna de acompanhar um "futuro músico de sucesso". Meses depois, em uma outra festa, pôde notar que Katarina não tirava os olhos de cima dele, jamais perderia uma oportunidade daquelas! Kat era tão linda... Entre as garotas da turma, só perdia mesmo para Elizabeth. Foi necessário apenas um empurrãozinho "thomasiano" para que Ficzko chegasse nela. Embora não houvesse amor da parte dele, ficaram juntos por bastante tempo, e só traiu-a por estar bêbado. Dormiu com Helena, e dois meses depois soube de sua gravidez. Quanta loucura! Ele não queria um filho. Se seus pais soubesem, iriam obrigá-lo a casar. Isto seria um disparate, afinal, ele tinha uma banda, um dia faria sucesso e teria milhares de belas fãs, um casamento só iria atrapalhar. A antiga forma de pensar fez com que Johnny risse: não tinha uma banda famosa, mas em compensação, também tinha um filho pirralho pra criar, e nem uma mulher para aturar. No fundo, ele não se considerava uma pessoa fria, mas, de fato, o era.




Elizabeth abriu a porta do banheiro. A casa permanecia no maior silêncio, e uma corrente de ar frio arrepiou-a. Notou que ao lado da porta haviam, no chão, uma roupa e um bilhete.




- Outro bilhete! - exclamou impaciente, abaixando-se para pegá-lo. - O que será dessa vez? Alienígenas invadiram a terra? Chegou o dia do juízo final? Nada mais me espantaria...




Ficou um tanto aliviada ao lê-lo, era de Ficzko:



Ele realmente a conhecia! Porém, se soubesse apenas mais um pouco sobre ela, perceberia que o pedido fora inútil. Ela queria sentir a dor do corte, queria que a marca ficasse ali, lembrando-a de nunca mais apaixonar-se novamente. Ao passar pela sala, viu que Helena estava dormindo. Subiu as escadas sem fazer barulho, ainda envolvida na toalha e com a roupa em mãos. Ao entrar no quarto, vestiu-se e deitou na cama, o sono viera rapidamente.



As 11:00 horas Helen acordou. Seu corpo doía, apesar da maciez do sofá, dormira de mal jeito. Não havia nenhum barulho vindo do andar superior, o que a fez constatar que os demais estavam dormindo. Andou até o quarto de hóspedes para buscar seus cigarros, parando antes no banheiro, para lavar o rosto, escovar os dentes e pentear os cabelos. Em seguida, já com seus cigarros seguiu para a cozinha, onde preparou um café bem forte, como acompanhamento. Fumou 5, um atrás do outro. O tabagismo só reforçava sua certeza de que morreria jovem.



Só agora pela manhã, não mais sob efeito do álcool, percebia a gravidade dos atos de sua irmã, na noite anterior.



- Vagabunda! - gritou, arrependendo-se em seguida, pois poderia despertar seus amigos.



Não sabia o que dizer à Beth, mal teria coragem de olhá-la nos olhos. Claro que não era a real culpada, mas a atitude da irmã a envergonhava profundamente. Esperava, ao menos, que Dorothea tivesse uma explicação no mínimo convincente.



Do outro lado da cidade, em uma pequena sala, ao som de uma vitrola, Thomas e Dorothy conversavam. Não haviam dormido, pois chegaram demasiado tarde do castelo.



- Aqui está! - exclamou Thom, erguendo um disco, da forma que se ergue um troféu. - Veja só, uma raridade, e custou uma nota!



- Você ainda está bêbado?



- Não, bebi pouquíssimo ontem a noite.



- Melhor assim, pois o que tenho a dizer é sério. Olhe, duvido que depois de ontem minha irmã deixe-me voltar ao nosso apartamento, e se eu insistir, ela contará para minha mãe, que me levará para casa, tenho certeza. E se meu pai souber, vai ser o maior escândalo, jamais poderei por os pés em casa novamente. O que faço?



- Ora, aprenda a andar com as mãos.



- Cale a boca, estúpido. Isso não tem a menor graça, esqueceu que eu estou nessa por sua culpa?



- Minha culpa? Faz-me rir, Dorothea Künzendorff. - Thomas estava furioso, gritava o mais alto possível. - Por a caso te beijei à força? Vais dizer que te estuprei?



- Você entendeu o que eu quis dizer. Preciso passar uns dias aqui com você, não vejo outra solução.



- Talvez seja uma boa idéia... Você seria minha fixa.



- Fixa? Falas como se eu fosse uma prostituta!



- E não é?



- Pare de bancar o ridículo! - exclamou, empurrando-o contra a pilha de discos.



- Pode passar alguns dias aqui, sim. Mas sou eu quem dita as regras, entendeu? E se você pretende se candidatar à minha namorada, pode esquecer. Não gosto de vagabundas como você, que traem a confiança da própria amiga.



Sem hesitar, Dorothea, enfurecida, bateu com toda a sua força na face de Thomas, deixando uma marca sobre a pele branca. Ele ficou alguns segundos imóvel, sem reação, e em seguida deu-lhe um tapa certeiro no rosto, e jogou-a no sofá. Quem diria... Ela, que a pouco fora ousada à ponto de desafiá-lo, agora debatia-se contra ele, indefesa como uma criança. Tinha a mesma expressão facial de Elizabeth, quando brigavam. Tendo em mente a imagem de sua ex-namorada, envolveu Dorothy pela cintura, e beijou-a lentamente, abrindo os botões do seu provocante vestido vermelho...